COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E DIÁLOGOS EM TEMPOS DE QUARENTENA: UM CONVITE À CONVERSA

Identificar-se como ser de linguagem traz diversas implicações. E é isso o que somos. Quando dizem que o ser humano é sociável e, ainda mais, precisa da interação com o outro, no fundo se está afirmando isto: somos seres de linguagem. Determinação da qual não podemos escapar, condição inclusive cantada em verso e prosa, como na letra de Tom Jobim: “É impossível ser feliz sozinho”.

Se for possível afirmar que em algum momento da evolução humana optamos pela linguagem, desde há milênios não há escolha. E essa determinação traz aspectos diversos, tanto positivos, quanto negativos, afinal, nem tudo são flores. E isso todo ser humano, toda pessoa consegue perceber, à sua maneira, afinal, lembrando agora de outro compositor, Caetano Veloso, “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

Estamos, portanto, fadados à linguagem, o que, rememorando Clarice Lispector, é sorte às vezes. Entretanto, o que significa exatamente estar fadado à linguagem, à palavra? Entre diversos aspectos, um deles é este: necessitamos da comunicação, da interação pela palavra, do diálogo. E a partir desse imperativo, podemos pensar um pouco sobre o que isso implica em nosso cotidiano e, mais ainda, quais as peculiaridades disso em nosso contexto contemporâneo, mais especificamente em tempos de quarentena e isolamento social.

Ora, certamente que ter de se comunicar, de interagir com o outro não é apenas um fado. E ter prioritariamente a palavra para fazê-lo, também não, por isso o às vezes dito por Clarice. Acontece que isso ocorre de formas diversas no contexto e nem sempre essa determinação flui com tranquilidade, aliás, quase nunca. Atreladas à necessidade de diálogo, quais outras se colocam? Ou , antes, como fazemos para cumprir com essa imposição? Uma resposta adequada a questionamentos como esses precisa ser identificada no tempo. Isso significa que, historicamente, a humanidade vai estabelecendo formas diversas de diálogos e, igualmente, exigências diversas a partir dessa necessidade de comunicação. Pensemos um pouco, então, sobre como isso ocorre no contexto contemporâneo.

Desde o advento da internet e suas interações virtuais, a comunicação ganhou aspectos peculiares e a forma como o ser humano se relaciona com a palavra foi recebendo novos contornos. Vale ressaltar que isso não é exclusivo da atualidade, visto que essas mudanças sempre acontecem, ou seja, em cada momento histórico a comunicação e o diálogo – logo, a linguagem – apresentam seus contornos próprios. Mas, um aspecto dessa proliferação virtual que se destaca é a possibilidade múltipla de interlocutores. Aliás, essa perspectiva já se apresenta com a explosão urbana em si, iniciada já há alguns séculos. Processo em que mais pessoas passaram a dividir espaços comuns, por momentos maiores, o que levou o sujeito a interagir com mais pessoas e mais cotidianamente.

Este seria então o panorama atual: pessoas aglomeradas em cidades, interagindo cotidianamente com o número razoavelmente alto de pessoas, nos contextos mais diversos: trabalho, escola, lazer, etc. Acrescentam-se a esse contexto as interações virtuais. Então, além de interagir com pares diversos em seu cotidiano, o sujeito interage ainda com outros pares mais no universo virtual – whatsapp, facebook, instagram, twitter, salas de bate-papo, chats, blogs, fóruns virtuais, páginas de internet, enfim, uma ninhada de possibilidades.

A princípio, sendo a interação pela palavra uma necessidade, isso parece ser uma maravilha: temos uma infinidade de possibilidades de diálogos. Certo? Nem tanto assim, afinal, não é bem o que se parece. É que nesse caso, quantidade não é mesmo sinônimo de qualidade. Diz Bakhtin que a linguagem é dialógica, isso significa que a palavra em si pressupõe um diálogo, mas o que seria exatamente dialogar? Em linhas gerais, o diálogo pressupõe uma troca entre interlocutores; troca de palavras, pela linguagem, a qual permite que se estabeleça uma comunicação entre pessoas. E a comunicação, por sua vez, significa “pôr em comum”, “tornar comum” uma ideia, um pensamento, um sentimento. Processo esse que é um verdadeiro dilema.

Tornar algo comum pela linguagem não é tarefa tão simples. Fazer chegar ao outro a minha mensagem exige um trabalho profundo com a palavra. É aí que se deve pensar a qualidade do diálogo. Refletindo mais especificamente sobre o contexto da internet, pode-se perguntar: que diálogo é possível com a quantidade limitada de caracteres? Ou, o que eu consigo realmente trocar com meu par numa limitação de caracteres e espaços? Qual a troca viável em um meme ou num like? O que consigo trocar com meu par num comentário de uma postagem? E essas são perguntas importantes, afinal, toda nossa existência se baseia nessas trocas linguísticas, lembrando Lacan.

Nosso contexto atual já enfrenta alguns problemas por “trocar” a qualidade pela quantidade. Lembrando de um quadro de Raoul Hausmann, uma colagem, “ABCD”, de início do século XX – o qual expõe um sujeito angustiado em meio a tantas informações, a tantos diálogos mal estabelecidos -, podemos pensar a angústia do sujeito do século XXI. E ao substituirmos a qualidade pela quantidade, vivemos a angústia de diálogos mal estabelecidos, mas camuflada pela ilusão de que falarmos ao monte já resolve. É o excesso da produção capitalista.

Quem não teve a impressão de que precisava dizer mais, ou ouvir/ler mais para melhor compreender ou ser compreendido? Quem não sentiu que aquela quantidade de caracteres, aquele espaço para o comentário não eram o bastante? Quantos não carregam consigo a sensação de que precisavam dizer mais? Na experiência de sala de aula, os professores têm relatado um aumento na quantidade de alunos que passam as aulas todas conversando, ou ao menos falando excessivamente. Mas, o que será que dizem? Tantas palavras publicadas, tantos diálogos simulados, porém, o que está sendo dito no mundo: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada”, Humberto Gessinger. Será que as pessoas têm conseguido dizer o que realmente precisam ou desejam?

A incompreensão dos diálogos mal sucedidos dos espaços virtuais se acentua ainda pela necessidade de outras trocas que compõem a comunicação e que a internet, por mais tecnologicamente avançada que seja, não consegue suprir: o olhar, a fisionomia, o toque, o odor. Esses aspectos são possíveis no contato real, olho a olho. Mas mesmo assim, ainda temos excesso de interlocutores em nosso cotidiano, exageradamente exacerbado pela correria diária de tantos afazeres, que mal conseguimos dizer ou ouvir, ou seja, não ouvimos nem dizemos o bastante exatamente porque não dizemos o que desejamos ou precisamos dizer. Mas ainda assim vivemos a ilusão do excesso de quantidade, do exagero.

E é nesse momento que ocorre uma possível virada em todo esse processo. Trocamos parte do excesso de interlocutores, comum ao nosso cotidiano, por um número bem restrito deles. A comunicação virtual permanece tacanha e aqueles elementos que encontrávamos nas muitas pessoas com as quais interagíamos cotidianamente agora precisamos encontrar em uma, duas, três pessoas. Agora, sem qualidade, nem quantidade. Nós dialogávamos – ainda que diálogos mal sucedidos – tanto com o mundo lá fora que nem o diálogo mal feito estávamos estabelecendo em nossas casas.

Agora precisamos dialogar com quem pouco dialogávamos. E, sendo menos pessoas, é natural que os diálogos também sejam reduzidos em sua quantidade. Mas continuamos tendo muito a dizer, é a nossa condição, e aí resta apenas desafogar em quem está na frente. De repente percebemos que aquela filha, que sim, já se sabia que fala bastante, está ainda mais falante. O mesmo com aquele filho, aquele marido, aquela esposa, aquela parceira, aquele parceiro, um ou outro parente.

E o mais surpreendente e desesperador disso é que, com pouquíssimas pessoas para se dialogar, sobra-se algum tempo para o diálogo consigo mesmo. Quem ainda não se deu conta de que de repente está falando sozinho mais do que antes. Conversando com si próprio mais do que antes. Ora, esse é o diálogo que realmente importa, porque ele possibilita um encontro com a nossa verdade, um encontro com nós mesmos, processo de grande valia para que a pessoa se conheça um pouco mais e, com isso, construa a sua melhora. Porém, é exatamente desse diálogo que tanto corremos diariamente, substituindo-o por diálogos mal sucedidos com tantos interlocutores.

Não obstante, na nova realidade que se impõe atualmente, onde falta a quantidade, pode sobrar a qualidade. Então, algumas possibilidades comuns nessa quarentena: a pessoa se afunda ainda mais nos diálogos virtuais; tenta aprender a dialogar com quem está debaixo do mesmo teto; passa a dialogar mais consigo mesmo, ainda que à revelia. Revelia sim, pois embora esse seja o diálogo mais importante, é dele que mais corremos. Não é à toa que o excesso de interlocutores é tão bem aceito na sociedade.

E como sempre é possível e necessário nos repensarmos continuadamente, uma possibilidade interessante é o exercício de reaprender a dialogar profundamente, sem limite de caracteres os espaços, sem a pressa de outro interlocutor à espera, com a possibilidade de buscar, no universo das palavras, aquelas que permitirão me tornar comum e permitirão ao outro também tornar o seu particular comum a mim. Dialogar com o outro e consigo mesmo, com tempo de sobra, para ouvir, para falar, para entender, se entender e se fazer entendido.

Jefferson Diório do Rozário é professor da Faculdade FAVENI, doutor em Letras pela UFES, com pesquisas e publicações nos estudos de Literatura e Psicanálise e Literatura e Filosofia.

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